O diagnóstico ou a suspeita de uma alergia alimentar em um filho traz consigo incerteza para qualquer família em um primeiro momento. Navegar pelo universo da alimentação infantil, já repleto de conselhos e opiniões, torna-se uma tarefa ainda mais complexa e, dessa forma, contar com informações incorretas ou desatualizadas, frequentemente disseminadas em redes sociais, podem gerar medo e levar a práticas inadequadas.
O conhecimento é a ferramenta mais poderosa para garantir a segurança e a tranquilidade. Portanto, fundamentar-se nas diretrizes mais recentes de entidades como a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), desvenda os principais mitos e verdades sobre a APLV e oferece orientação prática para que sua família possa tomar decisões conscientes e seguras.
A diferença crucial entre alergia e intolerância
Um dos pontos de partida mais importantes para a discussão é esclarecer a confusão comum e perigosa entre Alergia à Proteína do Leite de Vaca (APLV) e intolerância à lactose. Embora ambos possam causar desconforto gastrointestinal, são condições fundamentalmente diferentes.
A APLV é uma reação do sistema imunológico às proteínas do leite. Já a intolerância à lactose é um problema puramente digestivo, causado pela dificuldade em digerir a lactose, o açúcar do leite. Por isso, um produto rotulado como “sem lactose” não é seguro para uma criança com APLV, pois ele ainda contém as proteínas que causam a alergia.
O mito perigoso de atrasar a introdução de alimentos
Ainda é comum ouvir o conselho de que, para proteger uma criança, o ideal é atrasar ao máximo a oferta de alimentos potencialmente alergênicos, como ovo e amendoim. Este é um mito antigo que a ciência moderna já derrubou.
As evidências atuais mostram o oposto: existe uma “janela imunológica”, por volta dos 6 meses, em que o sistema imune do bebê está mais propenso a aprender a tolerar novos alimentos. A recomendação da SBP e de outras entidades médicas internacionais é introduzir esses alimentos (em formas seguras, como pasta ou farinha), com os outros, pois isso pode reduzir o risco de a criança desenvolver alergias a eles no futuro.
A confusão sobre a dieta materna na amamentação
Muitas mães que amamentam se sentem ansiosas sobre sua própria dieta, acreditando que precisam cortar vários alimentos para proteger o bebê. A verdade, segundo as diretrizes da SBP, é que não há evidências que justifiquem uma dieta materna restritiva para a prevenção de alergias. A recomendação é que a lactante mantenha uma alimentação normal e variada.
A dieta de exclusão para a mãe só é indicada como forma de tratamento, sob orientação médica, quando o bebê já foi diagnosticado com uma alergia e apresenta sintomas através do leite materno.
Leite de cabra é uma alternativa segura para bebês com APLV?
Esse é um mito comum e perigoso. Muitos acreditam que leites de outros mamíferos, como o de cabra ou ovelha, seriam alternativas seguras para bebês com alergia à proteína do leite de vaca (APLV).
No entanto, a realidade é outra: mais de 90% das crianças com APLV também reagem a esses leites, devido a um fenômeno conhecido como reatividade cruzada, quando o sistema imunológico reconhece proteínas semelhantes entre diferentes tipos de leite animal.
A verdade sobre os exames e o diagnóstico médico
Um erro comum é acreditar que um exame de sangue positivo confirma, por si só, a presença de APLV. Na realidade, o diagnóstico da alergia à proteína do leite de vaca deve ser feito com base em um conjunto de evidências clínicas, que inclui a avaliação dos sintomas, o histórico alimentar do bebê e, quando necessário, testes laboratoriais complementares.
Exames como o de IgE específica ou prick test (teste cutâneo) podem ajudar no diagnóstico — principalmente nos casos de reações imediatas —, mas não são conclusivos isoladamente. Em muitos casos, especialmente nas reações não mediadas por IgE, os exames podem vir negativos mesmo com a presença de sintomas.
Por isso, é essencial que o diagnóstico seja sempre conduzido por um(a) médico(a) especializado(a), com base em critérios clínicos, eventualmente incluindo testes de exclusão e reintrodução alimentar controlada.
A jornada de uma família que convive com a alergia alimentar é cheia de aprendizados — mas a desinformação não precisa ser um obstáculo. Hoje, a ciência oferece um caminho claro: quando bem compreendido, ele substitui a insegurança por confiança e transforma o medo em ação consciente.
Nesse cenário, a parceria com o pediatra e o alergista é fundamental. Com informação atualizada e livre de mitos, os pais se tornam aliados ativos no cuidado, observando sinais, registrando reações e colaborando para um diagnóstico mais preciso e um plano de tratamento eficaz.
Ao romper com os mitos e confiar no conhecimento científico, a família se fortalece. A alimentação deixa de ser fonte de medo e se transforma em um espaço de cuidado, atenção e afeto, permitindo que a criança cresça com saúde, segurança e uma relação positiva com os alimentos.
Referências:
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